Nos anos 90 do século XX, a concorrência tornou-se uma dimensão essencial do mercado, mesmo nos Estados tradicionalmente mais apegados aos bens públicos e à prestação de serviços de interesse geral. Numerosas empresas detidas pelo Estado foram privatizadas, no todo ou em parte, um pouco por toda a Europa. A noção de sectores “exteriores ao mercado” deixou de fazer sentido numa lógica económica aberta ao investimento das pessoas singulares e colectivas privadas. Actividades como a radiotelevisão, as telecomunicações ou a distribuição de energia tornaram-se áreas de actuação para todos os agentes económicos com envergadura para o respectivo empreendimento.
É no quadro desta abertura praticamente total à concorrência que surgiu, de modo visível e com crescente peso no ordenamento jurídico-económico, o conceito de regulação. Entre a intervenção clássica e abrangente do Estado, compreendendo a intervenção directa (Estado agente económico) e a intervenção indirecta (Estado legiferante), e, nos antípodas, o mercado liberal, entregue apenas a si próprio e sujeito à imprevisibilidade da lei da oferta e da procura, como preconizava Adam Smith, surge esta nova forma relacional entre o Estado, munido do seu poder de autoridade, e a economia, infraestrutura predominante no todo social.
Como característica essencial do fenómeno regulatório, diga-se que o Estado pode perfeitamente prescindir do seu papel de detentor de meios de produção, seja como empresário, seja como sócio de outros investidores, sem que tal signifique, de todo, uma atitude de menosprezo pela vida económica, ou de impotência face ao seu desenrolar; pelo contrário, a regulação abre novas possibilidades à intervenção condicionadora do Estado, incluindo a intervenção indirecta na dimensão regulamentadora, mas nela não se esgotando. Em bom rigor, a regulamentação passa a estar complementada pelo poder inspectivo e, quando é caso disso, pela força sancionatória; mas a regulação caracteriza-se ainda por ter, além da coacção, um outro mecanismo igualmente eficaz, desde que estribado no prestígio sólido e efectivo das entidades que a exercem – trata-se do chamado controlo prudencial, um poder de influência nascido de recomendações, directivas genéricas e outras formas de “aconselhamento” dirigidas aos regulados pelo órgão regulador.
A liberalização do mercado não significa, pois, necessariamente, a sua retirada da influência do Estado, uma vez que pode ser conciliada com amplas e eficazes atitudes interventivas, através da dotação de regras para os sectores de actividade objecto de regulação, a par da criação de entidades capazes de, com independência total (da Administração, mas também face aos próprios regulados), autoridade visível e prestígio decorrente do reconhecimento social, realizarem com sucesso as tarefas que lhes são cometidas por lei.
Acresce que a regulação do mercado não se pode construir de forma aleatória: ela tem uma lógica própria, uma dimensão evolutiva e uma vocação estruturante. A lógica assenta, desde logo, na regulação do fundamento do próprio sistema de mercado: a livre concorrência; sem esta intervenção, a ocorrência sistemática de práticas anti-concorrenciais poderia ocasionar a implosão do sistema, corrompido nos seus pressupostos de fluidez e transparência. A dimensão evolutiva aponta para a regulação de zonas fulcrais do sistema, como o mercado de capitais e as actividades bancária e seguradora, na qualidade de “sectores básicos” da economia. Por fim, a vocação estruturante é visível na disseminação regulatória por um sem número de sectores, desde os que produzem bens e serviços essenciais (caso do sector energético, da água, da saúde) aos que representam um modelo sócio-cultural sem o qual as sociedades contemporâneas não se reconhecem (as telecomunicações e a comunicação social são bem representativas dessa vertente imagética e, em simultâneo, económica, onde, embora em dimensões diferenciadas, a imago não será menos importante do que os recursos afectos ao investimento).
Daqui também decorre uma concepção nova de serviço público, segundo a qual a defesa do interesse geral só tem a ganhar com a concorrência entre fornecedores de bens ou prestadores de serviços, sem que tal seja posto em causa pela natureza essencial de tais bens ou serviços. Mas, uma vez mais, só uma regulação eficaz pode garantir que o interesse dos utentes não seja ultrapassado pela lógica do lucro puro e simples.
Vivemos numa época de mutações rápidas e de incerteza acentuada. Mas a enorme dificuldade na criação de mecanismos que procurem a consolidação de estruturas, quer a nível global (com os insucessos conhecidos, como é o caso da Organização Mundial do Comércio, no âmbito das regras de troca multilateral, ou do Protocolo de Quioto, quanto à preservação do meio ambiente), quer a nível regional (e aqui temos a União Europeia, com todo o pathos em volta do Pacto de Estabilidade e Crescimento), quer ainda a nível interno de cada Estado (sendo, apesar de tudo, este o patamar onde se esperam alguns êxitos, como, no caso português, se deseja que aconteça com a Autoridade da Concorrência, autoridade reguladora absolutamente central no contexto do mercado nacional), não pode nem deve suster a procura de soluções regulatórias capazes de relançar o crescimento económico, a expansão sustentada e o desenvolvimento social.